37 - DEUS AFIRMA QUE A VIDA É ESTE SONHO
O tempo avançava, lentamente, e tudo parecia confuso
e diferente. Em cada sonho de Carlota reavivavam-se imagens de outros sonhos
com vigor inusitado, preenchendo os trilhos da alma, confundido a memória dos
acontecimentos reais. Cada sonho acontecia-lhe mais intenso do que o anterior.
Ela virou-se e jurou ver Eduardo, mas isso era impossível. Fechou os olhos para
recordar o seu rosto e beijou-o apaixonadamente. Teria ficado louca ao ter
permanecido tanto tempo enclausurada no quarto? Apenas queria poder voltar de
novo a passear de mãos dadas com o marido ao longo das margens do rio, molhar
os pés, sentir que a vida fazia algum sentido, mas nada fazia sentido naquela
guerra. O significado das coisas, os sabores, os cheiros, as sensações, tudo
ficou danificado para sempre. Os mortos deixaram as palavras por dizer, os
campos e as crenças dos sobreviventes ficaram estéreis, assim como o sentido de
justiça. Tudo se alterou desde que os sonhos deixaram de poder nascer naquela
realidade que de imediato os massacraria.
Eduardo agarrou-se a um muro semidestruído para se
conseguir erguer. Levantou-se com alguma dificuldade e ali repousou, por breves
instantes, apoiado nele. Sentado, viu uma vez mais aquelas imagens em que não
queria acreditar. Antes do nevoeiro voltar a encobrir os campos da vergonha, os
olhos choraram, o peito contraiu-se de dor, o coração rasgou-se perante tamanha
indignidade. Quantas histórias perdidas naquele dia de confronto, quantos
mortos, quantos feridos, e quantos heróis nasceram no meio da neblina sem que,
contudo, de nada tivesse valido a pena.
A visão de Eduardo começou a turvar-se. Esqueceu o
lugar da boca e dos olhos, e dos cabelos, nariz e orelhas. Tinha medo daquilo
que começava a sentir. Debaixo dos pés desapareceu o chão robusto e rugoso que
deu lugar a um sem firmeza que ameaçava soçobrar. Deitou-se de novo, paralelo
ao céu, naquele espécie de parede onde se apoiara. As dores que começava a
sentir talvez fossem falsas, tal como o medo que ainda não desaparecera, tal
como a fraqueza que o invadia, densa e áspera e incolor. Pesava aquilo mais do
que tudo, até que recordou a cor do mar e os seus cheiros, o ruído melodioso
que as ondas faziam ao rebentar, a frequência das marés, os pontões e os cabos
e as dunas, a sensação de ter a areia debaixo dos pés. Olhou para cima e viu o
que não podia existir - uma imensa carpa voadora da cor mais vermelha que
alguma vez existiu, uma carpa metálica e sorridente que apesar de gigante
conseguia ser misteriosamente leve e diáfana. O perfume da maresia existia no
espaço por onde Matsuba se movimentava, e uma orquestra tocava, baixinho, uma
belíssima valsa de Strauss enquanto o enorme animal desaparecia, de novo, por
entre a neblina.
Aquele dia da batalha ameaçava tornar-se o mais
longo de todos os dias da vida de Eduardo, tudo o que até ali tinha acontecido
foi um perfeito pesadelo, um sonho mau que não devia ter ocorrido. No sonho de
Carlota a guerra também não devia ter acontecido, os lugares estavam todos
trocados bem como os tempos em que tudo sucedia.
Ficou escuro, e a terra lamacenta acrescentou dificuldade
à nova corrida de Damião. As botas pesavam-lhe cada vez mais e ele nem
questionou a estranha aparição de Matsuba a indicar-lhe o caminho da fuga. A
chuva começou a cair com maior intensidade, e nem parecia ser natural, nada lhe
acontecia de maneira natural
O lado de fora do quarto de Carlota estava igual. A
mansão ainda não se tinha transformado no magnífico palacete de outrora e as
suas mãos e coração rogavam por sonhos menos tenebrosos.
- Onde estás Eduardo? Devo ter sonhado que tudo isto
nos aconteceu.
Uma parede enorme ergueu-se do nada e impossibilitou
a rápida fuga dos soldados Eduardo Damião e José Castanheira que ficaram
encurralados. O sol, que não tinha comparecido naquele dia vergonhoso, começou
a pôr-se encoberto pela neblina sedenta de sangue e de morte. Matsuba já não
bailava por entre as nuvens densas e escuras, e um vento vigoroso e gélido
começou a soprar.
- Esta é uma guerra que não devia ter acontecido!
Tudo está errado neste lugar, isto só pode ser um terrível pesadelo, e nada
existe para além do que aqui se encontra. Teria sido muito importante termos
conseguido antecipar a ofensiva das tropas alemãs, mas ninguém imaginou que o
inimigo fosse capaz desta ousadia. Foram inteligentes, deviam conhecer as
nossas fraquezas e a fraca capacidade de adaptação dos nossos soldados à
realidade das trincheiras e às suas rotinas. Temos de conseguir sair daqui,
temos de conseguir escapar antes que a morte vença e a nossa coragem esvaneça
de vez.
O cansaço desapareceu sem explicação, assim como
todas as formas de receio. Avançaram, corajosos, enquanto Eduardo Damião usava
as mãos para murmurar uma última oração em ladainha:
- Tira-nos deste lugar, ó Deus, ajuda-nos a
acreditar! Tira-nos deste lugar que não deveria existir, ó Deus, e auxilia os
feridos e estropiados, os loucos e os ainda crentes, os poucos que, como nós,
ainda se mantêm ativos. Este vento que assobia bem que podia ser a Tua voz
dizendo que escutas. Que esta bruma e este fumo intenso e nauseabundo que nos
cerca mais não sejam que a outra face desse belo planalto verdejante e
perfumado por onde caminhas e de onde nos escutas. Tira-nos deste lugar, ó Deus
misericordioso!
Tremiam-lhe os dedos que ainda sentia, o que era bom
sinal. Eduardo contava-os com os polegares, não fosse estar enganado, não fosse
estar a imaginar coisas onde elas não existissem. Todos os dedos estavam, de
verdade, no seu devido lugar, o que era bom sinal.
- Tira-nos deste lugar, ó Deus, pois o que aqui
viemos encontrar não é uma guerra, é uma outra coisa que nenhum homem podia
imaginar. Será, talvez, um sonho tudo o que aqui acontece, ou a minha mente é
traidora, perversa e vingativa? Se assim for, ó Deus, então nada devemos temer,
apenas as nossas mentes que extravasam loucura. Se assim for, já não deve
tardar muito o nosso acordar, já não deve tardar muito, ó Deus misericordioso e
bom…
Eduardo Damião não obteve resposta. Continuou a
contar os dedos das mãos, em oração, enquanto marchava, pois era só isso que
importava, era só isso que sentia como sendo real no meio daquela barbárie e
carnificina. Imaginou as mãos de Carlota a segurarem as suas, e a luz não
esmoreceu apesar da dor permanente que sentia o coração. Consciente, quase um
fantasma, Eduardo escutou as suas próprias palavras como segredos murmurados pelo
vento:
- Deus afirma
que a vida é este sonho, é um rio a fluir, e não o devo tentar compreender. Não
penso em mais nada, mas não tentarei esquecer a verdade das coisas que aqui vim
encontrar. Se o amanhã existir, talvez me possa devolver a coragem necessária
para prosseguir viagem. Quero a minha vida de volta, quero voltar para os
braços de Carlota com quem desejo vir a ser feliz.
Eduardo estava no lugar errado, na data errada,
porém verdadeira. Ninguém sabia ou conseguia explicar porquê. A época era a
errada, e a opção de seguir para França acabou por lhe ser imposta e
transformou-lhes as vidas, cedo demais.
Carlota continuava a esfregar-lhe as mãos e a
acariciar-lhe os dedos. Roçou-lhe os cabelos no rosto, ou então foi isso que
ele imaginou antes dela o beijar, de novo, apaixonadamente. Sonharam que o seu
amor estava ali presente a falar mais alto do que tudo.
Beijaram-se, os corpos dos amantes sentiram-se,
irracionais, apaixonados, e tudo passou a ser o passado, o presente e o futuro.
Nada mais disseram, e depois dormiram.
Acordaram no chão branco imaculado do quarto da
mansão, felizes, escutaram o som que os ramos faziam agitados pelos ventos que
chegavam do sul, e não mais temeram. Ofereceram o que ainda não tinham dado um
ao outro, talvez apenas em sonhos, vezes e vezes sem fim.
A chuva caía lá fora, batia no chão da varanda, e os dois
regressaram ao calor doce dos seus corpos húmidos e Carlota deixou de ter medo
de sonhar.
Comentários
Enviar um comentário