36 - ATÉ A FELICIDADE PODE SER FELIZ




Uma estrela brilhava no teto do quarto branco mais do que qualquer outra. Os astros foram ali colocados às dezenas por um mestre estucador para replicarem o firmamento. Os silvos das balas ainda eram audíveis e iam vencendo os intervalados silêncios. Os grandes olhos de Carlota olhavam para cima de cada vez que os escutava, miravam as constelações para relativizar a angústia.
Ela tinha de ser capaz de sair daquele quarto onde se refugiara.
Uma estrela, tal como uma casa, não fala, apesar do seu brilho fazer acreditar no contrário. A magnífica luminosidade matinal encheu o quarto de tranquilidade e paz, aqueceu-o onde antes o frio reinava, presenteando Carlota com uma mensagem que ela acreditava ter chegado do campo de batalha. –A guerra queima os olhos e devasta o coração dos homens destruindo-lhes a alma e a esperança.
O calor entrava pela porta dizendo-lhe que tinha chegado a hora de sair daquele isolamento. O rio convocava-a, os dias cresciam, e acreditar no futuro ainda era possível. Carlota receava essa viagem, pois difícil é viajar na vida sem dor, embarcar de porto em porto sem que a vida doa ou a alma insista em não chorar, sem que a felicidade demore a chegar, sincera, pura e verdadeira. Ela abriu a porta e colocou um pé desse lado da existência. Era inevitável que o fizesse pois a clausura ameaçava transformá-la em alguém que era o contrário de si.
As leis vigentes do outro lado da porta pareceram-lhe iguais, isso porque o universo é objetivo e sensato, e ela aprendeu a considerá-lo real durante a clausura, algo com o qual se podia até sonhar. Daquele lado tudo continuava tão material e imaterial como antes, apenas menos branco. Carlota reentrou na mansão e do topo da escadaria cheirou os incensos que tão bem conhecia. Estava admirada com a naturalidade com que tudo acontecia, e como a guerra lhe quebrou a monotonia que podia ser a sua vida, e até a felicidade podia ser feliz ao tornar-se igual às monotonias de todas as vidas, mas aquela guerra era uma cousa nova, insensível e tacanha, que parecia ser incapaz de se cansar.
Carlota sorriu ao olhar a fotografia do esposo naquela moldura veneziana, trajado a preceito. Foi capaz de recordar o dia em que lhe mostrou a casa pela primeira vez e ele tremia, medroso, ao fundo das escadas. Damião só descansou quando ouviu as suas palavras quentes lançadas daquele exato lugar.

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