35 - O SONHO ERA AQUELE LUGAR ONDE SE SENTIA BEM
O inferno era não ter notícia alguma do que por lá
se passava, e a mente continuava a pregar-lhe partidas com o único propósito de
a sossegar. O quarto branco começava a derreter para deixar antever a
realidade. O espírito de Carlota esvaziou-se ao ponto de ela ter deixado de
acreditar, e os sonhos transformaram-se numa espécie de prisão obscura e
claustrofóbica de onde Matsuba resolvera escapar, mesmo sabendo que só ele
seria capaz de devolver-lhe a esperança. Primeiro desapareceram todas as
janelas do edifício, depois as portas, os telhados e as paredes derreteram
lentamente. Os alicerces da mansão esboroaram-se e só ficou o terreno onde
cresceram ervas daninhas, silvas e muito mato bravio.
O tempo voltou atrás a uma época onde os animais e a
natureza se entretinham a ser animais e natureza, e os homens ainda não eram.
Carlota apreciou viajar até esse passado longínquo onde o lago permanecia gelado
meses inteiros e a neve pintava de branco a paisagem. Um manto de nevoeiro tomou
conta desse passado e ela sentiu os ossos a enregelarem e o sangue a deixar de fluir.
Quando decidiu avançar pela fina película de gelo que cobria o rio e que rangia,
ameaçando partir-se a qualquer instante, o medo atingiu o seu auge e uma angústia
insuportável tomou conta do seu coração.
Carlota soube que Eduardo estava vivo, apesar de ferido
e encurralado. As forças não o tinham abandonado e a carpa Matsuba tinha lá chegado
para o ajudar. Sentiu-se tranquila pela primeira vez desde que o marido partira
para a guerra. Uma criatura daquelas só podia existir em sonhos, assim como na guerra
não nascem borboletas nem alfazemas. Na guerra só crescem sepulturas e inimigos
obstinados e cruéis.
Carlota soube que vivia dentro de mais um sonho e sabia
que enquanto ali permanecesse, nada de mal podia acontecer a Eduardo Damião.
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