32 - O INFERNO HABITA NA ALMA DOS HOMENS




Máscaras de gás iluminadas ficaram espalhadas pelo chão como ídolos, crisântemos mórbidos semeados pelos campos da batalha espreitavam por entre os corpos ainda quentes dos guerreiros mortos. Os homens fitavam o infinito com olhares vítreos num labirinto de pernas e braços retorcidos. As armas abandonadas naquela terra de ninguém eram silhuetas a anunciar aos ventos quem eram os vencidos. Formavam um vasta floresta entristecida onde uma opereta de gemidos e murmúrios perdurou antes da chegada triunfante do silêncio e da escuridão.
Aquele dia negro nasceu descomposto e desconsiderado, e nele cresceram pecados sem fim, loucuras tamanhas capazes de transformar quilómetros de trincheiras e de campos de batalha em cemitérios sem fim. Os corpos de milhares de guerreiros jaziam, descompostos, transparentes, num final calamitoso sem direito a choros ou exéquias.
O inferno provou que habita na alma dos homens, e mostrou-o em La Lys para que jamais fosse esquecido.
- Diz-me, meu amor, onde estás agora? Diz-me se estás vivo. Amo-te e morro um pouco mais a cada instante que passa, deitada neste chão branco, sem saber novidades dessa guerra. Choro, pois só consigo ver lápides e sepulturas carregadas de flores, e vislumbro silhuetas de outras mulheres ajoelhadas numa terra lamacenta e enegrecida. Diz-me, meu amor, onde estás agora? Diz-me se estás vivo…
O silêncio regressou ao quarto ao mesmo tempo que o horizonte se vestia de negro. Carlota resguardou-se no passado ao olhar para a chama de uma vela velha que resolveu acender, mas as memórias e imagens desses dias teimavam em não aparecer. Olhou o rio onde Matsuba mergulhara, e reparou que ainda se encontrava tingido de vermelho. Ao passar delicadamente os dedos pelos seus cabelos, ela voltou a ter medo de sonhar.
- A minha alma está repleta de ondas e marés, e de frases enigmáticas proferidas por pessoas que não conheço mas que sinto fazerem parte de mim. Contam-me histórias do meu passado como se fossem lendas ou acontecimentos raros, e eu duvido se realmente as vivi. Decerto, nunca existi. Tenho receio de quem sou e sinto pavor desta vida que me trouxe tão depressa até este lugar, e eu que nunca tive pressa de lhe pertencer, não assim, não com este medo que cresce a cada instante e que não me dá alívio. Deixarei de ser capaz de recordar! A tristeza tomou conta dos meus sonhos porque a guerra te levou, Eduardo, e agora só escuto vozes que amaldiçoam e já nem sei em que dia me encontro.
Eduardo tentou correr para aquela imagem de Carlota que ali mesmo o chamava, no meio do campo de batalha, acenando-lhe da janela do quarto. Ele estava ferido, estendido no chão, depois de ter dado uma queda aparatosa que quase o fez desmaiar. Desejou adormecer para melhor a conseguir escutar.

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