28 - AQUI, NESTE QUARTO, TUDO É POSSÍVEL
Eduardo Damião cedo descobriu a dimensão absurda da
loucura, e isso aconteceu ainda antes de ter chegado às trincheiras. A frente
de batalha era implacável. Os soldados tentavam proteger-se daquela insensatez
conforme podiam. Tudo o que lhes chegava através dos sentidos, o cérebro
procurava filtrar e depurar em vãs tentativas para modificar a realidade.
Aquela espécie de purificação acabava destruída pelas poderosíssimas e
implacáveis forças da existência. Os soldados já tinham sido todos transformados
após terem sobrevivido o primeiro dia àquele inferno!
A brigada tentava chegar até junto dos seus
camaradas britânicos. Todos se moviam conforme podiam ao longo dos mais de doze
quilómetros de trincheiras escavadas perto de Aire-Sur-La-Lys.
- Devagar! Não se deixem matar por distração! O
primeiro gesto em falso pode muito bem ser o vosso último. Rastejem, mantenham
o corpo junto ao chão e a cabeça protegida para evitarem as balas do inimigo.
A casa falou com Ana Carlota durante um sonho, com
um tom de voz tão suave que ela quase não a escutava:
- Um dia, quando já fores mulher, serás a minha
dona! Descerás por estas escadas e afagarás o corrimão carregada de orgulho.
Estarás mais madura e eu deixarei de ser a casa dos teus sonhos de criança. Um
dia deixarei de ser uma ruína esquecida e abandonada, sem ervas daninhas a
povoarem os meus recantos, e não terei apenas a companhia dos pássaros e das
tempestades.
Uma casa não fala, uma casa é uma casa e, como tal,
é incapaz de reproduzir qualquer vocábulo. Esta é uma incapacidade por todos
reconhecida. As coisas não falam, mas dentro daquele quarto rodeado pela
estranha luminosidade esbranquiçada, ela gostava de acreditar que todas as
coisas eram possíveis.
- Matsuba é agora o único capaz de me compreender,
mas já não me pode ajudar. O Espírito do
rio também parece ter perdido a noção do tempo desde que se aventurou a
nadar neste céu branco e quase infinito do meu quarto.
Ana Carlota deitava-se de costas no chão do quarto,
com os braços esticados para os lados, e as palmas das mãos abertas a sentirem
a frescura da madeira que esfregava muito ao de leve. Tudo tinha sido pintado
de branco, as paredes, o teto, os lambris, os rodapés, as portas e as portadas
das janelas. Os azuis do céu e das águas ficavam ainda mais intensos, e
destacavam-se no meio de tanto branco acabando por nele se refletirem e
projetarem. Foi assim que aprendeu a escutar as palavras daquela casa. Era mais
fácil fazê-lo ali no seu quarto, com as portas fechadas, para que ninguém a
pudesse incomodar.
Matsuba, que acompanhava bem de perto os seus pensamentos,
cansou-se de tanto branco e resolveu saltar pelo ar movimentando-se como um peixe-voador.
Ziguezagueou pelo quarto antes de sair através de uma das janelas viradas a sul.
Depois de agitar as barbatanas com vigor, mergulhou nas águas tranquilas do rio.
- Espírito do
rio nunca esquecerá o que fizeste por ele, mas apenas te podia aconselhar.
Procuravas a felicidade e ela apressou-se a fugir de ti. Passou a fazer parte
dos teus sonhos, tal como nós. Foi com eles que começaste a procurar
ultrapassar os teus infortúnios, mas agora que a guerra chegou, ficaste privada
do teu amor e da tua alegria. Eduardo partiu para um lugar longínquo e tenebroso
de onde as notícias tardam em chegar, e o teu coração parece querer rebentar. As
lágrimas são fraco consolo para tanta dor.
O que Carlota desejava era ter o esposo ao seu lado,
poder passear as mãos na sua pele e na sua carne e não ter de escutar a voz de uma
miragem. Preferia não ter medo de sonhar, nem ter tanta vontade de gritar.
Comentários
Enviar um comentário