21 - O MUNDO FICA ATRÁS DAQUELA PORTA




O quarto do sótão ainda permanecia fechado, e não permitia que o rapaz tivesse a verdadeira noção de como seria o interior daquela divisão. O cheiro era bastante desagradável, pois muitos pássaros tinham construído ninhos nos beirais dos telhados. O chilrear era constante e pouco harmonioso, mas apesar disso Eduardo Damião conseguiu perceber o ruído de um avião que riscava o céu, lá ao longe, enquanto Ana Carlota abria a porta branca e cinzenta onde o seu mundo acontecia.
- Vem, Eduardo, vou mostrar-te o quarto dos meus sonhos. É aqui que tu me ensinarás a dançar.
Uma luz branca muito intensa iluminou o último piso da habitação. Era tão refulgente que quase os cegou.
Carlota estava deitada no meio do soalho da divisão, que lhe ia servindo de cama, e que mais não era que uma imensidão de madeira branca, quase infinita, que Eduardo Damião acabava de conhecer. Assim que ali entrou, ficou sem palavras. Deixou de sentir a mão de Carlota, a mesma que ainda há pouco o protegia, deixou de escutar e de cheirar. Acabara de entrar no mesmo domínio enevoado onde Ana desmaiara. As pedras que lhe lançaram encontravam-se por ali espalhadas, bem perto dela, e a maior de todas estava manchada com o seu sangue e adornada com alguns cabelos seus. As roupas de Eduardo ficaram tão brancas como o cenário que ela lhe deu a conhecer. A porta para esse lugar tinha ali sido colocada por Matsuba, que também era o responsável pela manutenção desse espaço comprimido que ficava algures entre sonho e realidade. A centenária carpa amarela, espírito do rio, era a única entidade capaz de se orientar naquele espaço indefinido afastado de tudo o que se conhecia e onde não existiam quaisquer referências temporais. O grande peixe nadava por todo o lado, aos ziguezagues, para melhor fugir aos engodos, às linhas e aos anzóis que, de quando em vez, surgiam do teto do quarto.
A névoa mantinha-se muito cerrada e mal se conseguia vislumbrar o corpo de Carlota ou o vermelho vivo que pintava a pedra maior que era o farol de Eduardo.
Certo dia Matsuba foi enganado pelo mais astuto dos pescadores e pensou que o seu fim tinha chegado. O odor quase hipnótico que emanava daquela espécie de farinha que tinha caído do céu era irresistível, e ele deixou de ser o dono dos seus movimentos. Engoliu grandes pedaços do precioso manjar, como um louco, e a grande velocidade, até sentir um forte esticão na cabeça que muito o perturbou.
Ana Carlota agitou-se e o seu corpo estremeceu. Ela saiu do seu profundo estado de dormência. Tinha sentido a presença do espírito do rio ali bem perto de si.
Eduardo Damião achava que tinha sido enganado, estava surdo, sem olfato, e mal conseguia ver. Caminhou cuidadosamente, muito devagar, e mesmo assim caiu por três vezes antes de Carlota o ter agarrado e de Matsuba lhe ter devolvido os sentidos da mesma maneira misteriosa como tudo, naquela manhã, lhe estava a acontecer. E eis que, de repente, a grande carpa deu várias cambalhotas no ar ao ficar com a boca rasgada por um anzol gigantesco que a aprisionou.

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