07 - FUGIR PARA LONGE DALI
Sentada à mesa da cozinha, Carlota permanecia muito
quieta a observar tudo o que acontecia, com imensa atenção. A testa estava
húmida e ardia. A avó Bernardete bateu palmas de contentamento. O compadre
Jesuíno estava quase a chegar e o dia podia acontecer conforme tinha sido
planeado.
A prima Emília trincava uma fatia de bolo mármore
depois do copo de leite lhe ter desenhado uns belos bigodes brancos. O avô Tomé
ia mastigando a sua torrada enquanto a tia Josefina e o tio Artur não tiravam
os olhos dela, o que lhe causava uma terrível sensação de desconforto.
Ana Carlota sabia que ia ganhar uma valente dor de
cabeça e, para ser sincera, começou a ficar preocupada com as ideias que lhe afluíram
à cabeça. Era como se ela não pertencesse àquele lugar e aquelas pessoas não
fizessem parte da família. Os tios fitavam-na insistentemente, e ela sentia-se
presa à cadeira tal era o peso do corpo e das pernas. Nem pensar em mexer um
músculo, não fosse ele desobedecer-lhe. Seria possível que a cena na cozinha
também fizesse parte de um sonho? Se assim fosse, qual seria o mundo de
Carlota, e em que realidade viveria?
A jovem começou a sentir-se perdida, angustiada, e
sem saber o que fazer. E o que pretenderiam os tios que a observavam até à
exaustão, sem pestanejar, e sem nunca pararem de a mirar com olhares intensos e
inquietantes?
A cozinha tornou-se um lugar estranho e hostil.
Carlota fez um esforço sobre-humano. Empurrou a mesa
que a oprimia, fez força com as pernas e as costas para afastar a cadeira onde
estava sentada fazendo-a tombar. Ficou livre e correu desenfreada para fora
daquela casa que deixara de conhecer, só queria ficar bem longe dos olhares
intimidantes do casal.
Os avós deixaram de sorrir, ficaram sem saber o que
pensar da estranha atitude da neta.
- Ora essa… mas o que terá passado pela cabeça da
rapariga? – indagou Bernardete, muito preocupada com o que acabara de
acontecer.
O avô Tomé resolveu seguir atrás de Carlota, que
tinha deixado escancarada a porta de casa, mas ela já tinha desaparecido de vista,
tal a velocidade colocada na fuga.
- Terá ficado maluca? Se calhar viu algum fantasma –
desabafou Tomé, com perplexidade na voz.
Ana Carlota não parou de correr até sentir as pernas
a doer e nos pés crescerem bolhas. Continuou, em ritmo mais brando, pois não podia
deixar que isso a atrapalhasse na fuga. A última coisa que ela desejava era que
o seu amigo rio a voltasse a enganar. Os olhares lançados pelos tios foram
motivo suficiente para ela suspeitar de que talvez ainda não tivesse acordado,
e o que lhe estava a acontecer mais não era que um sonho mau que parecia não
ter fim.
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